quarta-feira, 17 de outubro de 2012

PROSA DIGITAL: ILHABELA/SP - CIRCUITO CENTRO/NORTE

trecho percorrido

Um dos únicos município–arquipélago marinho brasileiro, Ilhabela está localizada no litoral norte do estado de São Paulo, na microrregião de Caraguatatuba. Reduto de milhares de paulistanos nos finais de semana, feriados e alta temporada, a ilha é conhecida por sua ótima estrutura turística e qualidade dos serviços oferecidos. Com aproximadamente 350.000km², apenas uma pequena parte de sua área – nesse caso a que possui maiores facilidades e infraestrutura – é intensamente frequentada por turistas convencionais. Considerando esse fato e meu interesse em explorar locais pouco modificados e com maior identidade ambiental e cultural, optei por criar um roteiro diferenciado envolvendo off road, trilhas caiçaras, praias desertas, piscinas naturais, canoas motorizadas, artesanato e comidas típicas. Em resumo, segue o relato de mais de 100 quilômetros percorridos entre estradas, trilhas e mar em um único dia. 


Início:
Eram 07 horas da manhã e eu já me encontrava na área central da localidade para acertar os últimos detalhes. Dentre as diversas opções de acesso à praia de Castelhanos, localizada no extremo leste da ilha com acesso por uma estrada de 22km, optei por locar o serviço de transporte 4x4.  O trecho é relativamente pequeno, porém sinuoso em determinados locais. Cortando a ilha por áreas de relevo, no ponto mais alto da estrada chegamos a uma altitude de 800m e consequentemente a descida final até a praia.

imagem: www.casanailhabela.com.br


Praia de Castelhanos
Castelhanos é a maior praia de Ilhabela e possui aproximadamente 01km de extensão. O acesso pode ser feito por mar e por terra – a pé, bicicleta, motocicleta ou jipe. O visual é paradisíaco e com pouca infraestrutura. Uma indicação para quem desejar apenas passar o dia em Castelhanos é realizar uma trilha a pé até a cachoeira do gato.
Bem, como estava apenas de passagem e o tempo era limitado, pela orla da praia, caminhei até seu limite na ponta norte. Ali, em um pequeno quiosque já me aguardavam o Rogério e o Vagner, dois caiçaras jovens e moradores da comunidade de Serraria – praia localizada na região nordeste do arquipélago – que atuam como guias e trilheiros daquela região. Junto a eles e para minha surpresa, também estava de prontidão o pequeno Bilo, um cachorro vira lata acostumado a longas jornadas nas áreas mais irregulares possíveis. Após conferência de material, suprimentos e abastecimento de água, iniciamos a trilha que nos levaria até a praia de Serraria.
praia de castelhanos 

área central de castelhanos



recursos hídricos
Trilhas, águas cristalinas e misticismo.
O que me aguardava nas próximas 05 horas, eram 15km de trecho altamente sinuoso entre picos das montanhas e pequenos vales próximos às praias que ali se encontravam. A primeira hora de caminhada se resumiu em uma trilha de fácil acesso em aclive. Aos poucos, fomos subindo aquele morro com ótima vista para o mar e ao fundo Castelhanos de apresentava por completo. Dali pra frente o percurso foi apresentando o lado mais selvagem da localidade, com mata fechada e trilhas mal conservadas, onde apenas com os guias, conseguíamos definir a direção a ser alcançada.
Um fator surpreendente é a quantidade de recursos hídricos existentes. Inúmeras nascentes e piscinas com águas cristalinas são alcançadas e servem de refresco e contemplação nos momentos de parada. Um fato curioso que percebi no caminho, é de como aquela região é frequentada por caiçaras pescadores com foco na identificação de grandes árvores – em muitos casos centenárias – com o objetivo de construção novas canoas que facilitarão o trabalho na pesca artesanal. Algumas clareiras foram encontradas já com os troncos esculpidos apenas aguardando o momento de serem conduzidos para os pequenos vilarejos. Se a dificuldade de deslocar pelas trilhas já era considerável, imagino como seria trabalhoso conduzir um objeto com o peso de centenas de quilos entre as montanhas e morros que cercam a localidade.







canoa em processo de confecção


Com mais da metade da trilha percorrida, chegamos a praia da caveira, um local paradisíaco e totalmente inabitável. A praia com algumas centenas de metros, oferecia uma das piscinas naturais mais belas que até então havia visto. Com água muito cristalina e calma, o pequeno rio seguia seu fluxo até o mar. São muitas histórias místicas que compõe aquele lugar. Em conversa com os guias locais, o nome da praia deve-se a um antigo naufrágio realizado no sul da ilha e após meses todas as ossadas dos tripulantes da época apareceram ali.

praia da caveira

piscina natural - praia da caveira



Outro fato interessante do trajeto percorrido são as pequenas construções instaladas. Nada que chegue perto de uma pequena vila, mas algumas casas feitas de “pau a pique” em péssima conservação, são encontradas em pontos esporádicos.



casa de pau a pique



poço na nega
No trecho final, o corpo já necessitava de um pouco de descanso e após uma íngreme subida entre uma vegetação vasta e fechada, passamos ao lado do poço da nega. Cercado pela flora, o espaço formado por água turva e calma foi o ultimo trecho para um rápido banho. Conversando com o Rogério, fui informado sobre o lado assombroso daquela localidade. Dizia ele que, uma das muitas escravas que a ilha já possuiu, fugiu da comunidade onde vivia e foi ali para um suicídio. Amarrou em sua cintura alguns cipós e pedras e se jogou no poço para evitar o sofrimento contínuo que aquela época apresentava. Segundo relatos dos moradores caiçaras, é comum vê-la rondando a localidade. Particularmente, eu acho um barato essas estórias. Sendo bem trabalhadas, podem atrair visitantes através do imaginário e consequentemente gerarem renda para as comunidade que ali vivem com os serviços de apoio oferecidos.






Praia de Serraria:
Localizada em meio à costões de pedras, esse destino só pode ser alcançado por trilha ou embarcações. Sua orla possui aproximadamente uns 200 metros onde vivem aproximadamente 130 pessoas, divididos em vinte e poucas casas. A economia do local depende exclusivamente da pesca e muitos turistas sequer ouviram dizer sobre a comunidade. Energia elétrica não existe. A distribuição de luz por um pequeno período da noite é distribuída por um gerador a diesel, onde a intensidade da iluminação é mínima e permite o funcionamento apenas de algumas tvs. Aquecimento de água e refrigeração dos peixes são feitos por outros meios. 


nascer do sol em serraria

comunidade de serraria


crianças de serraria



orla da praia de serraria
O relógio marcava 14h e após conhecer os moradores, fui levado para provar um dos pratos típicos preparados especialmente para minha visita. A fome naquele momento era enorme e fui surpreendido pela conhecida “tainha feita no buraco”.  O processo é basicamente simples. Após a tainha limpa, temperada e enrolada em folhas de bananeira, um buraco de aproximadamente 40 centímetros de profundidade na areia é cavado e colocado pedras fervilhadas em uma fogueira. Com o peixe em meio às pedras e o buraco coberto novamente com a areia, aquilo se torna uma espécie de forno e depois de algumas horas o peixe se encontra cozinho. Acompanharam o prato principal, arroz, farofa e salada verde cultivado em uma horta orgânica da própria comunidade. Com toda sinceridade, o aroma e paladar oferecem uma sensação impar.
Com as energias repostas, as próximas duas horas reservavam o descanso e contemplação da praia, junto ao conhecimento do artesanato local, com diferentes obras em sua grande maioria feitas de bambu.
Com o final da tarde se aproximando, fui apresentado ao Érico, pescador experiente e responsável pelo meu deslocamento até a área central na ilha. Diferente de todas as embarcações que até então já havia utilizado, o trajeto foi realizado por uma canoa motorizada no auge de seus 40 anos. Segundo Érico, a canoa foi uma herança de seu pai.



retorno pela face norte

final da tarde - retorno


O trecho percorrido possui mais de 70km e ocupada toda a faixa nordeste, ponta norte e noroeste do arquipélago. A paisagem atípica, junto ao relevo montanhoso e pôr do sol se iniciando, formaram uma das paisagens mais belas daquele dia.
Por volta das 18h30, estava novamente à praia do Perequê na área mais urbanizada e turística da Ilhabela. Foram 12 horas de percurso com uma realidade completamente diferente do dia a dia das pessoas que frequentam a localidade.  Após experiência realizada, trechos percorridos, cenários observados e o povo fiel a sua origem, posso afirmar que foi suficiente para conhecer sua verdadeira identidade.